Todo filme tem
sempre algo pra dizer, independente do gênero. No entanto os que são criados
com um intuito bem maior do que um simples entretenimento possuem um caráter mais
reflexivo ajudando a moldar a forma de pensar da sociedade através dos tempos,
reforçando a oportuna frase de Truffaut: “Todo grande filme contém um
pensamento sobre cinema e um pensamento sobre o mundo.” Assim sendo constroem
bases sólidas para uma boa reflexão sobre os males que nos atingem em cada
geração. Apresento aqui uma lista de filmes que entraram para a história por
ultrapassar com maestria o campo do entretenimento e que por isso merecem o reconhecimento como uma aula de cidadania:
O GRANDE DITADOR (The Great Dictador, 1940)
“O grande ditador não envelheceu tão bem
comparado a outros filmes antinazistas da época (...), mas o simples fato de
ele existir e os stills de Chaplin a caráter exercem um fascínio que vai muito
além do que conquistado pela película em si”.
Basil
Wright, crítico e cineasta
Histórico. É
assim que podemos condensar a síntese do maior sucesso de bilheteria do mestre Charles Chaplin. A ousadia da criação
desta obra-prima, o primeiro filme falado do ator/diretor escancara todas as
ameaças que o próprio recebeu na época de sua realização. No entanto, Chaplin
era um dos poucos artistas que não se deixavam intimidar pela censura dos
grandes estúdios ou a ignorância de quem acredita ter o domínio total sobre a
humanidade. Ele desafiou seus próprios limites e os limites demarcados pelos
outros para brilhar em O grande ditador.
O filme faz uma alusão cômica à figura monstruosa de Adolf Hitler com a mestria
característica do gênio. Aproveitando-se da semelhança física de ambos, Chaplin
brinca com as excentricidades insanas do cruel ditador criando cenas memoráveis
como o discurso de abertura em alemão improvisadíssimo, com palavras
desconexas, sem pé nem cabeça. Mas certamente é a antológica cena em que dança
com o Globo nas mãos é que marca a mensagem da obra. Depois de ser confundido
com o tirano Adenoid Hynkel (Chaplin),
o pacífico barbeiro judeu (Chaplin)
vai parar no meio de um furacão de ódio que não consegue entender. Na pele do
ditador, que por obra do destino vai parar em um dos campos de concentração, o
barbeiro usa sua influência benigna de forma hábil para tentar assegurar uma
ideia frágil de Paz entre os soldados alemães e seu povo. E é neste momento que
entra em cena toda a genialidade do “dono” do cinema mudo ao criar uma espécie
de comédia dramática em que leva o povo ao delírio e os nazistas ao desespero.
O êxito desta marca cinematográfica vai muito além do talento de Chaplin, pois
se trata de uma das mais brilhantes obras da história que ontem agiu como uma
denúncia contra o desrespeito aos direitos humanos e hoje soa como uma reflexão
mais que oportuna sobre o assunto, mesmo depois do fim da verdadeira idade das
trevas. Será mesmo que tudo que influenciou a concepção nazista está morto e
enterrado com Hitler?
Pense nisso: “É pela promessa de tais coisas que desalmados têm subido ao poder.
Mas, só mistificam! Não cumprem o que prometem. Jamais o cumprirão! Os
ditadores liberam-se, porém escravizam o povo. Lutemos agora para libertar o
mundo, abater as fronteiras nacionais, dar fim à ganância, ao ódio e à
prepotência. Lutemos por um mundo de razão, um mundo em que a ciência e o
progresso conduzam à ventura de todos nós. Soldados, em nome da democracia,
unamo-nos! (segue o estrondoso aplauso da multidão).
ADIVINHE QUEM VEM PARA JANTAR?
(Guess who’s coming to dinner?, 1967)
“Adivinhe quem vem para jantar nos brinda com um
roteiro perfeito, diálogos inteligentes, uma bela trilha sonora e ótimo
elenco.”
70 Anos
de cinema
Adivinhe quem veio para pisar no calo da
conservadora sociedade americana dos anos 60? Foi justamente o ousado filme de Stanley Kramer que não precisa de
rodeios para apresentar ao público do que se trata a obra. Já pelo título já
podemos ter uma noção do que está por vir quando os jovens Joanna (Katherine Houghton)
e John Prentice (Sidney Portier) resolvem
se casar. Ambos seriam protagonistas de uma emocionante história de amor. Apaixonada, a jovem Joanna faz o que toda
moça de boa família deve fazer. Apresentar seu escolhido para a família.
Contudo, o que era para ser um simples ato de cordialidade e respeito se
transforma numa instigante trama dramática. Tudo por conta da diferença racial
entre o casal. Pequeno detalhe que ganha proporções grandiosas à medida que os
pais da moça conhecem o futuro genro. Perplexos, não conseguem camuflar a base
em que foram construídos seus princípios. Principalmente por parte do pai Matt Drayton (Spencer Tracy). Já a mãe Cris
(Katherine Hepburn, fabulosa) vai
ao limite de sua sensibilidade ao defender o casal com sutileza, mas nunca
esmorecendo sua convicção. O mesmo panorama se desenvolve pelo lado do rapaz. O
pai (Roy E. Glenn) protesta de cara
amarrada enquanto a mãe (Beah Richards)
faz coro a Sra. Drayton. Tudo se concentra no ambiente claustrofóbico da casa
dos Draytons, em sequencias pontuadas pelo tom de sermão e reflexão num dia que
começa estranho, e termina extraordinário. John, o médico negro, evita
confrontar as tradições da família da moça, mas dá um tapa de pelica a cada
resposta formulada por ele com total elegância, afinal, trata-se de um rapaz
culto, de carreira renomada, internacionalmente famoso. Atributos que talvez
tenham ajudado a diminuir a barreira erguida inicialmente pelos pais da moça. O
filme é conduzido mais por uma faceta do famigerado preconceito. E também temos
a oportunidade de apreciar a queda do mesmo diante da postura de personagens
bem construídos, interpretações seguras e premiadas. Especialmente da imbatível
Hepburn, que sente na pele as emoções de sua personagem. Este certamente é o
maior trunfo de Adivinhe quem vem para
jantar. Um filme que não figura entre os maiores do cinema, mas
indispensável quando o assunto é os insistentes equívocos do ser humano em
avaliar o caráter do ser humano através da pigmentação da pele.
Pense nisso: “Afinal, não importa o que pensamos (...).
Milhões de pessoas neste país ficarão chocadas e ofendidas com vocês. E vocês
dois terão que enfrentar isso talvez cada dia da vida de vocês. Podem tentar
ignorar estas pessoas, ou podem ter pena de seu preconceito, sua cegueira, seu
temor estúpido. Mas é aí que deverão ficar juntos”.
Monólogo final de Matt Drayton
O HOMEM ELEFANTE (The
Elefant Man, 1980)
“O filme é um grande triunfo para todos,
sobretudo para Lynch, que recebeu numerosas honras”
1001
FILMES PARA VER ANTES DE MORRER
Se as
aparências enganam, o ditado popular bem serve ao diretor David Lynch que por anos andou pelas vielas do descaso
cinematográfico até ser convencido por Mel Brooks a estar a frente de uma obra
tão linda quanto perturbadora. A história real de John Merrick (John Hurt),
mais conhecido como “o homem elefante” é uma daquelas histórias que se
permanecesse apenas pendente nas telas já seria extraordinária. Porém, quando
se sabe que se trata de algo real, fica ainda mais fácil passear por dentro das
emoções dos personagens. Aliás, perfeitas em todas as sequências mostrando os
fatos ocorridos com o protagonista desde que foi descoberto pelo médico
cirurgião Dr. Treves (Anthony Hopkins) que se compadece
daquela figura quase desumana vivendo de forma sub-humana num buraco de um estabelecimento
onde é explorado como animal por um inescrupuloso dono do lugar. Treves atua
como um salvador do pobre Merrick, um homem que nasceu com defeitos congênitos
que faz com que seu rosto não seja algo prazeroso de se apreciar. O bom doutor
tenta inseri-lo na sociedade de forma cuidadosa e amável. Aos poucos, o choque
causado pela aparência do “monstro” vai dando lugar a uma figura humana
impecável. Merrick usa seus atributos pessoais para quebrar as barreiras cruéis
impostas pela imponência da hipócrita sociedade vitoriana do século XIX. A
história é desnuda com uma minúcia perfeita em preto-e-branco, sintetizando a
maldade daltônica da natureza humana oculta sob qualquer aparência. Hopkins
atua de forma plena. Sensível, sem ser piegas e Hurt se equilibra entre quilos
de maquiagem do personagem de onde provém um espetáculo inesquecível de emoções
verossímeis. Produção obrigatória para tempos atuais de supervalorização da
aparência física e do bulling, O Homem
Elefante é um filme proposto por um só objetivo: chocar. O choque leva a curiosidade
e a curiosidade leva a questão. A questão a reflexão. Tudo funciona como uma
cadeia de processos que nos obriga a olhar bem mais de perto o coração de um
homem chamado de animal, mas que nos aponta com uma proeza assustadora quem são
os verdadeiros animais nesta história.
Pense nisso: “O bicho não era um cão,
Não era um
gato,
Não era um
rato.
O bicho, meu
Deus, era um homem.”
TRECHO DE O BICHO (MANUEL
BANDEIRA)
A VIDA DE DAVID GALE (The life of
David Gale, 2003)
“Um brilho, um show. Um filme que importa, numa época de tantos filmes
que não importam.”
50 ANOS
DE CINEMA
O filme começa com uma corrida como se fosse uma
alusão ao que seria a missão da repórter investigativa Bitsey Bloom (Kate Winslet)
depois que é escolhida por um prisioneiro no corredor da morte para ser sua
porta-voz. O desafortunado em questão é David
Gale (Kevin Spacey), um
ex-professor de Filosofia que vê sua vida virar um inferno depois que uma aluna
o denuncia por abuso sexual. Respeitado e extremamente inteligente, Gale perde
tudo neste pacote. Prestígio, emprego, família e até alguns amigos, caindo no
vício do alcoolismo e se afastando cada vez mais de uma vida digna. Mas nada se
compara ao que estaria por vir. De repente ele é o protagonista de numa trama
fantástica do assassinato de uma de suas melhores amigas, a professora Constance (Laura Linney) que é encontrada morta aparentemente vítima de
violência sexual. Ambos estavam em militância contra a pena de morte no Estado
e quase sempre desafiavam o poder local. Em seus últimos dias, mas precisamente
quatro, ela chama à prisão a jornalista Bloom onde decide contar a ela todo o
início do processo que desencadeou sua decadência. À medida que vai ficando a
par dos acontecimentos, a jornalista muda o tom irônico e passa a ser mais
precisa em suas avaliações, acreditando que Gale pode mesmo ser inocente e,
portanto, há falhas no sistema. Ela, com a ajuda de um estagiário, começa a
montar os pedaços do quebra-cabeça e chegam a uma conclusão surpreendente. O
filme do diretor Alan Parker é um
dos ótimos thrillers dos últimos tempos do cinema por falar de um tema pouco
explorado, ou explorado com pouca maestria pelo mesmo. A inclusão da pena da
morte. Um assunto que de tão polêmico parece não ter fim mesmo com o subir dos
créditos. Aí está o valor de A vida de
David Gale, mesmo que no decorrer da trama, o filme assuma uma posição
definitivamente contrária ao sistema olho por olho, dente por dente. Então se
você é a favor da pena de morte não assista. Mas se mesmo assim você gostar de uma trama
forte, de excelente roteiro e um elenco espetacular, vale a pena conferir só pelo
simples fato de ver Winslet e Spacey juntos neste filme, que apesar de não ter
tido o retorno esperado, passa sua mensagem com uma absoluta precisão.
Pense nisso: “Passamos a vida
inteira tentando enganar a morte. Comendo, inventando, amando, rezando,
brigando, matando. Mas o que realmente sabemos da morte? Só que não tem volta. Mas
chega-se a um ponto na vida, um momento quando a mente sobrevive aos desejos,
às obsessões. Quando os hábitos sobrevivem aos sonhos. A morte pode ser uma
dádiva.”
TERRA FRIA (North Country, 2004)
“Pra mim o que importa é um filme fazer a
diferença”
DOUG
CLAYBOURNE, produtor executivo do filme
O título Terra
fria não poderia ser mais apropriado para contar como a mineradora Josey Aimes (Charlize Theron) se tornou uma heroína por acaso, e por descaso,
de seus próprios companheiros de trabalho nas insalubres terras de Minnesota
(EUA). Vinda de uma adolescência perturbada depois de ter sido violentada pelo
professor, sofrer com o desprezo do pai por uma gravidez indesejada, ter de se unir
a um homem que faz com que siga sua sina de mocinha de novela mexicana ajudaram
o sofrimento caminhar lado a lado com ela até que um dia resolve abandonar o
marido e ser dona de seu próprio destino. Assim, ela vai parar numa Mineradora
de ferro, onde o duro trabalho que estaria para desempenhar ali foi muito mais
além de suas habilidades físicas. Josey teve de enfrentar várias batalhas com o
mesmo enredo e cenários diferentes. Em casa, com o filho adolescente, com as
colegas no trabalho e com os moradores e especialmente moradoras do local. As
barreiras da revolta dos colegas de sexo oposto sempre a deixavam e suas
companheiras em situações deveras desconfortáveis no trabalho. A frente de um
grupo de mulheres, que a princípio parecia relutante a sua causa, ela consegue impor
a sociedade o acesso a algo que deveria ser lhe dado de graça: respeito. Josey
denuncia um dos colegas por abuso sexual e ao levar o caso para o tribunal
compra uma das maiores batalhas judiciais da história americana. Episódio que
motivou a diretora Nikki Caro a
realizar o filme. Aliás, Caro parece ser uma especialista em contar as
histórias de superação de mulheres frente à ignorância humana. O mesmo estopim
usado em Encantadora de baleias, com
a diferença de que aqui o conto de fadas deu lugar a um clamor real que
persiste até os dias de hoje. Se valer da beleza estonteante de Theron para dar
veracidade à trajetória de Aimes bem como as atuações impecáveis de Frances McDormand e Sissy Spacek, causou um forte impacto
num contraponto mais que positivo na luta contra a frieza dos críticos perante esta
obra imperdível que fez e ainda pode fazer diferença na vida de muitas mulheres.
Pense nisso: “O que se pode fazer quando os poderosos
atacam os oprimidos? Bom, pra começar você se levanta e fala a verdade. Você
defende seus amigos. Se levanta mesmo estando sozinho.”
TRECHO DAS CONSIDERAÇÕES FINAIS DO ADVOGADO BILL
WHITE (WOODY HARRELSON) NO FILME